terça-feira, 16 de julho de 2013

FITA BRANCA: OLHARES POSSÍVEIS




CLARA COELHO MARQUES



Algumas imagens nos convocam, nos chamam, nos fascinam e nos interrogam. As experiências do Olhar que podemos ter podem ser inúmeras, na medida em que podemos nos relacionar de diferentes modos com as imagens que nos cercam. E ao mesmo tempo são únicas, já que os significados são construídos na relação de quem olha com o que é olhado. De acordo com Trevisan:
“Na prática cotidiana, a emergência da cultura da imagem faz com que diariamente, sejamos bombardeados por imagens de todos os tipos, formas e cores que produzem uma mudança na maneira como nossas sensações percebem o real” (2003, p.37)

 Mas quantas vezes paramos para olhar atentamente?  Com olhos “inéditos”? Com olhos curiosos e desconfiados? As experiências que tenho tido com as imagens também têm se dado de formas múltiplas. Há imagens que nada me dizem, assim como algumas me tocam, muitas vezes por me desacomodarem. E são essas que me movimentam a pensar.
Nesse sentido, elegi o Filme A Fita Branca (2009), do diretor Michael Haneke, para essa reflexão acerca da Imagem e mais especificamente sobre a Imagem cinematográfica.
A Fita Branca é um desses filmes que toca, que desacomoda com sua narrativa, suas imagens e temáticas. E que permite termos a experiência do envolver-se, de sentir, de ser presença nas imagens e ao mesmo tempo assistir. Chocar-se e algumas vezes sentir vontade de sair da sala para não ver, ao mesmo tempo em que sentimos o desejo de continuar vendo.
Essa dualidade ou multiplicidade da experiência também se faz presente nos olhares possíveis de serem construídos sobre essa narrativa. Na medida em que poderíamos pensar esse filme a partir de diferentes recortes e de diversos enfoques.
Fita Branca conta uma série de histórias e acontecimentos de um vilarejo na Alemanha às vésperas da Primeira Guerra Mundial. O foco principal é uma série de crimes misteriosos que modificam toda a dinâmica dos moradores daquela comunidade.
A primeira cena do filme já anuncia o primeiro desses crimes: O médico do vilarejo está voltando para casa, montado em seu cavalo, quando um arame esticado entre duas cercas o derruba. Semanas depois, acontecem novos crimes: um celeiro inteiro é incendiado e o filho do barão local é seqüestrado e torturado.
            O suspense em torno desses crimes vai direcionando nosso olhar para a busca de evidencias que nos ajudem a descobrir os autores dos mesmos. Enquanto acompanhamos a busca da resolução do conflito, passamos a entrar nas casas, a saber um pouco do que se passa com cada família do vilarejo.
Nesse deslocamento do espaço público para o espaço privado, passamos a tomar conhecimento de uma estrutura patriarcal altamente autoritária, marcada pelo signo da punição e da disciplina. Em uma cena, por exemplo, vemos um pai bolinar a própria filha durante a madrugada. Enquanto isso, outro pai, o pastor da cidade, amarra as mãos do filho adolescente na cama para impedir que ele se masturbe.
De certa forma, há uma tentativa de explicar a origem do Nazismo a partir desta estrutura patriarcal e autoritária, que teria produzido os jovens que, mais tarde, iriam aliar-se ao Nazismo.  Um dos indicadores para essa leitura é a fala inicial do narrador:
“Os eventos que se passaram ali, naquele vilarejo, no início do século, são de extrema importância para se compreender os eventos dramáticos que aconteceriam na Alemanha, décadas depois”.

         
Além dessa relação de cunho mais causal proposta pela narrativa, durante o filme outras relações de causa e efeito vão sendo exploradas. Como por exemplo, a utilização da Fita Banca como a simbolização da inocência e da pureza. Ao usarem, as crianças se lembrariam de sua condição de pecadores, procurando manterem-se afastadas do mal.
            No entanto, além da possibilidade de uma discussão sobre o Nazismo, existem outras questões que merecem ser olhadas. E são essas, que nesse momento, escolho para pensar. Escolho as imagens que persistem em mim. E a primeira pergunta que me faço é: O que acontece com aquelas crianças?



           

            Essa pergunta, ainda sem resposta, me mobiliza e desestabiliza “minhas verdades” sobre a Infância. Verdades construídas e negociadas com outras imagens que me dizem o que é ser criança e o que é possível falar da infância.
Mesmo antes do final do filme o resposta ao mistério já está dada. Mas porque é quase inaceitável acreditar que com cometia os crimes eram as crianças?
Tomo esse filme como uma imagem que problematiza a Infância. Questiona o que é possível na relação entre os adultos e as crianças. Há algum limite entre seus corpos infantis e adultos? Porque nos aterroriza tanto pensar que crianças e adolescentes sofrem e cometem crimes, bárbaros e brutais, diga-se de passagem?
            De alguma forma, as nossas concepções de Infância ainda estão bastante atreladas à idéia de uma infância pura, inocente e protegida construída na modernidade.


Nesse sentido, as imagens da infância no filme circulam entre o Mito da Inocência, dando força a ele em algumas cenas, e a Infância que “escapa” (DORNELLES, 2005), que não cabe nas nossas categorizações e que nos desacomoda, principalmente por sofrer e cometer atos de violência.
Maria Rita Kehl em seu artigo “Televisão e Violência do Imaginário”, trata da violência, principalmente do ponto de vista da violência que seria própria do funcionamento do imaginário, em que o fluxo continua de imagens dispensariam a necessidade do pensamento. No entanto a autora refere-se também a um aspecto importante da violência presente das produções cinematográficas e televisivas, “Hoje, assistimos tranquilamente a cenas que nos fariam sair da sala alguns anos atrás. Essa elevação no padrão de tolerância em relação ao horror me preocupa muito. Vamos nos acostumando à violência...” (KHEL, 2004, p 89)
Há sim, muita violência e horror no filme, mas a violência presente em grande parte das cenas de Fita Branca, não é a violência de Platoon, de Kil Bill, de Scarface e de tantos outros filmes. É uma violência de outra ordem, é uma “violência sem sangue”, a violência contra as crianças, contra as mulheres e trabalhadores. É a violência cometida pelas próprias crianças. A violência presente nas relações. É uma violência que choca sem mostrar, já que as cenas escuras, em que apenas ouvimos, dispensam a imagem do ato em si.




Além dos efeitos de som, a própria montagem vai contando a história. As cenas sugerem o que está acontecendo nos quartos e salas em que se mantém, algumas vezes com as portas fechadas ou na penumbra. Em relação ao visível e o invisível no cinema, Xavier aponta que:
“No cinema as relações entre o visível e o invisível, a interação entre o dado imediato e sua significação, tornam-se mais intricadas. A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela” (2003, p.33)

            Assim, podemos afirmar que a violência está presente, mesmo sem se tornar imagem na tela. Não só a “ouvimos”, como sentimos sua presença através das imagens que sugerem. Ela é invisível na medida em que não está dada como imagem, mas torna-se visível na interação com as seqüências de imagens e sons.
            Esse jogo de cenas claras e escuras, em tons acinzentados, próprios dos filmes pretos e brancos e muito bem explorados pelo diretor, reforça a sensação de um passeio pelo passado. O close-up no rosto dos personagens valorizam as expressões e nuances e a câmera, em algumas cenas, vai seguindo os mesmos. Com esse recurso podemos nos sentir dentro da história, nos sentimos um pouco parte dessa narrativa.
O cinema com seus recursos, suas montagens, histórias que permitem identificações permite um jogo de presença- ausência: Ser presença sem estar de fato na história, participar sem correr riscos, um olhar sem corpo...
“O olhar do cinema é um olhar sem corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Identificado com esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não está situado, não está ancorado-vejo muito mais e melhor” (XAVIER, 2003, p.36)

 “Na filmagem estão implicados uma co-presença, um compromisso, um risco, um prazer e um poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar. Como espectador, tenho acesso à aparência registrada pela câmera sem o menor risco ou poder, ou seja, sem a circunstancia. ”( XAVIER, 2003, p.35)



O Olhar principal, que escolhe os ângulos, as cenas e os cortes são de quem produz o filme. Não só o olhar sobre a imagem, mas sobre o mundo. De uma forma geral, o cineasta comunica suas concepções, suas sensações e visões de mundo, materializando-as na imagem que vemos na tela. Conforme Flusser (apud A. MARTINS, 2007, p.116).

“É como se esses profissionais emprestassem seu ângulo de visão para o público que observa suas imagens. Além do posicionamento particular daquele olho sobre as cenas, está a própria concepção de mundo do sujeito que olha e registra as cenas, re(a)presenteando-as. Em última instância, as imagens que o público vê nas fotos e nas telas de cinema não representa a realidade, mas o ponto de vista do fotógrafo e do cineasta a respeito daquela realidade, que o público, em, geral assume como se fosse seu.”

Em Fita Branca, além do olhar do diretor, do espectador e dos personagens; o olhar do narrador (professor) que também é um olhar fabricado pelo diretor, nos mostra o vilarejo e cada casa,  nos apresenta os personagens e divide suas hipóteses e dúvidas. O narrador constitui-se um produtor da imagem, na medida em que conduz as cenas.
O olhar do professor que nos conta a história não é onisciente ou onipresente, ele não sabe tudo, também há cenas que fogem ao conhecimento dele, algumas cenas vão acontecendo sem que sejam narradas ou que haja participação desse personagem.
            Mas em alguns momentos a câmera assume a visão do narrador, ele é quem vê e quem conta. Assim, compartilha com o publico suas impressões, angústias e afetos. Os olhares do personagem-narrador, da câmera em si e de quem assiste se fundem.  É esse ver da percepção que estará intrínseco ao ver do espectador.
Evidentemente, o espectador está em vários lugares ao mesmo tempo: com aquele que vê no interior da ficção, com aquele que é visto, e, ao mesmo tempo, em posição para avaliar e responder aos argumentos de cada um deles. Isso indica que, tal como aquele que sonha, o espectador fílmico é um sujeito plural: em sua leitura ele é e não é ele mesmo. (BROWNE, 2005: 246)

Essa multiplicidade de diferentes olhares propicia, ao espectador, olhar por dois ângulos diferentes, o do personagem-narrador e o da câmera, ultrapassando a ideia de uma visão única e centralizada. Há um lugar oferecido ao espectador, na medida em que pode desenvolver uma identificação com os personagens ou com o próprio narrador, dependendo das características do mesmo. Assim:
Nossos sentimentos como espectadores não são “análogos” aos sentimentos e interesses dos personagens. Não somos obrigados a aceitar suas visões de si mesmos, ou de outros. Nossa “posição” como espectador é bastante diferente dos sentidos anteriores de “posição”: não é definida em termos de orientação no interior da geografia construída da ficção nem de posição social do personagem que vê. (BROWNE, 2005: 240)

Nesse, sentido o olhar do espectador, o nosso olhar, pode experimentar diferentes enfoques para compor seu próprio olhar, a partir da sua subjetividade, da sua história. Dessa forma, cada espectador estabelece uma relação com o mundo filtrado por ele. Ao oferecer diferentes possibilidades de experiência, o cinema nos leva a experimentar as coisas de uma nova maneira e a construir outras visões de mundo.
























Referências Bibliográficas

BROWNE, Nick. O plano-ponto-de-vista. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema. Vol. 2. São Paulo: Editora Senac, 2005.

DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.

MARTINS, Alice Fátima. “Imagens do cinema, cultura contemporânea e o ensino de Artes Visuais” in OLIVEIRA, Marilda O. (Org.). Arte, educação e cultura. Santa Maria: Editora da UFSM, 2007. p.111-130.
                                               
TREVISAN, Amarildo Luiz, Imagem e razão comunicativa. In: SILVEIRA, A. C. M., Comunicação e cultura midiática. Santa Maria, UFSM, 2003.

XAVIER, Ismail. Cinema: revelação e engano. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


WENDERS, Wim. A paisagem urbana. In: Revista Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n° 23: Cidade, IPHAN, 1994.

(re)começo

A primeira "brincadeira" que faço nesse novo espaço é na verdade um recomeço: Iniciei com a ideia de ter um blog, um espaço virtual para compartilhar meus pensamentos, reflexões, imagens que me tocam... em 2010 no http://www.fotoinfancia.blogspot.com.br/... não o atualizava há um certo tempo... e heis que ao tentar entrar o bloqueei...
Bueno, como acredito que a vida é sempre feita e refeita... é composta de momentos, começos e recomeços... "Mãos à obra"!!